Dorme estudante, com uma rotina toda preenchida,
sabendo exercer esse papel. Noutro dia acorda formado, adulto (ou não),
profissional, candidato a um mercado de trabalho em crise, com um
monte de tempo vazio, sem rotina, sem emprego, sem independência, e sem saber
muito a respeito dessa nova identidade, a profissional. E assim, aos
pouquinhos, vai caindo o véu do "mundo do estudante universitário". Cai a
ficha e revela um estado com pouquíssimas oportunidades de trabalho; a carreira
acadêmica, ainda, como um espaço de investimentos constantes, e em longo prazo,
ou seja, privilégio para poucos; ter "padrinhos" é muito importante
para entrar no mercado; os privilégios de ser "bem - nascido". Além
das exigências do mercado, não basta a graduação, é preciso cursos,
especializações, diferenciais, ou seja, mais investimento, de todas as
ordens.
Para aqueles que compram educação com muito
suor, não é possível se dar ao luxo de esperar sentada, ou em Paris, que
surja uma oportunidade na sua área de graduação. Com o fim das cerimônias, fica
o orgulho de ter conseguido formar filhos "doutores" e a
expectativa dos pais que esperam bons empregos, retorno financeiro e
independência ainda que isso não seja verbalizado na mesa do jantar, não
diretamente. É preciso mais que conhecimento; sensibilidade, para compreender
que educação e qualificação é um caminho longo, que não se encerra com a
graduação.
E eis o comentário, "esse curso não é pra
pobre não”. O foda-se que seria endereçado no passado se transforma em desejo
de continuar acreditando que é possível fazer um caminho que alie satisfação,
alegria e retorno financeiro. Afinal, inseridos num sistema capitalista, também
somos parte dele, e são criadas as infinitas necessidades. Existe o
momento em que começam a sobressair os determinantes sociais que diferem A, de B,
os “bem-nascidos”. Está posto, eles não caminham em pé de igualdade, não
tem os mesmos privilégios, nem mesmo para qualificação.
A nossa sociedade sempre esteve organizada de modo
que são previstos os caminhos, locais e funções as quais podem estar aqueles
que pertencem à determinada camada social. Ainda assim, há quem se
arrisque a subverter a ordem do que "está posto". E neste contexto,
num ato de libertação, surgem os “pobres ousados” que resolvem dar oportunidade
para que os filhos alcancem degraus que eles ajudaram a construir, a manter,
mas não conseguiram sequer pisar.
“Não é para filho de pobre", mas há quem resolveu
por a prova e conseguiu sentar nas mesmas cadeiras que sentaram "os bem-nascidos",
que estudaram em escolas com mensalidades maiores que o salário mínimo do
país, fizeram inglês desde a pré-escola, intercâmbio. Para os outros havia a
possibilidade de sair do ensino médio e ir trabalhar, fazer um curso técnico,
ou até mesmo uma graduação, mas só aquelas destinas aos "filhos de
pobre". Mas não, há quem resolveu comprar o sonho dos filhos e viver junto
deles aquilo que não puderam realizar no passado. Permitir que eles sejam o que
desejem ser, oportunidade esta que não tiveram. E assim, se dá ,
sucessivamente, o rompimento das cartilhas históricas que dizem o lugar
que está destinado aos "filhos de pobre".
Estes diplomas, por vezes, produzem alguns "incômodos",
porque eles foram escolhidos e construídos com saber e conhecimento
próprio, e são iguais aquele que pertence a filha de "Dr. Fulano",
que mora na cobertura X, estudou na escola Y. Afinal, o diploma significa muito
mais que a licença para exercer uma profissão, instrumentalizar um
conhecimento. Na nossa sociedade ele ganha o status de mérito que se
alcança ao subir um determinado degrau pré-destinado, que não poderia ser desejado,
muito menos alcançado por aqueles que não são “bem-nascidos”. Afinal, isso não
é para “filho de pobre”.
Ou melhor,
não era.
Com "o diploma" em mãos, percebe-se
que este é só o começo do fim. É tempo de outras pequenas lutas
diárias. Sabendo que, não tendo estradas abertas que liguem até “o
sucesso", é preciso ir limpando o próprio caminho, fazendo estradas,
escalando montanhas, caminhando junto daqueles que também fizeram estradas. E, às
vezes, é preciso pegar atalhos, tomar fôlego, fazer outras coisas,
alcançar alguma estabilidade financeira. Afinal, a vida não é feita apenas de
poesia, sonhos e utopias. Ela vai acontecendo com as suas urgências
palpáveis. E isso não faz de ninguém menos digno do conhecimento que construiu.
Só o faz alguém, como tantos outros que vieram e ainda virão, que
precisam construir o seu lugar ao sol.
Pois, independente
do espaço que ocupe, nada pode subtrair de ninguém as construções
próprias, aquisições simbólicas, encontros e significados. Isso é próprio. E é
impagável.
Por hora, quem sabe, em algum momento, a gente consegue construir
uma sociedade menos desigual. Começando por um sistema educacional menos
capitalista, que preocupe-se menos em vender conhecimento para que as pessoas
depois o venda e, assim, fazer girar a roda da mercantilização do saber,
do fazer, do cuidado. E para isso, é necessária uma prática de constante
resistência. Tendo em vista que, na organização social que vivemos, é preciso
vender a nossa prática para comprarmos tantas outras coisas, mas isso pode ser
feito de maneira menos selvagem, excludente e segregadora.
Elisa.

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