sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

A respeito de uma jovem terapeuta.



Em “Cartas a um jovem terapeuta” Calligaris fala a dois terapeutas, ambos iniciantes no ofício do cuidado. 
Apenas com uma pequena mochila nas costas e menos despretensiosa, falo do lugar de uma jovem terapeuta.   

Há dias venho pensando a respeito deste fazer cuidado. Dos perigos e alegrias que envolvem a sutil aventura por entre as veredas do cuidar do outro.
Sutil, pois este é um dos tantos papéis que desempenho enquanto a vida acontece. Ser terapeuta foi o papel que a vida trouxe para me permitir reafirmar, sobretudo nos dias de insegurança, que o inesperado esconde pequenas alegrias clandestinas.
E assim, caminhando, descobri ser o fazer do terapeuta aquém de uma tarefa mágica, onipotente e além de uma mera profissão para preencher a carteira de trabalho. 
Onde então? Permaneço na sede de descoberta!
Com a proximidade do final do ano, inauguro também alguns finais. Pontos de descanso, de reflexão. De vários nadas. Depende do ângulo que se olhe. 
Finaliza 2017, o ano em que me tornei terapeuta. Como e quando torna-se terapeuta? Construção possível? finita? 
Havia o número de registro. Uma sala com duas poltronas vermelhas. Uma mesa, cadeiras. Um tapete. Papéis. 5 anos de aporte teórico. Mais papéis. Brinquedos. 
Um setting terapêutico. 
Contudo, o correr dos dias tornou presente a necessidade de muito mais e muito menos. 
Sim! Menos cerimônias. Papéis. Jalecos. Inseguranças. Cópias. Modelos. 
Mais presença verdadeira, interesse genuíno pelo que é do outro, ouvidos dispostos a escuta empática, acolhedora. 
Mas, para ser acolhida do outro é preciso acolher a si mesmo. Principalmente nas angústias, incompletudes. No não saber.   

Ao saber que é possível, e necessário, ser morada para si, descobre-se que para ser terapeuta não precisa ser uma casa vazia. Afinal, em casa vazia não mora afeto capaz de se deixar tocar e tocar em retribuição. 
Só o tempo me fez sentir bem mais confortável naquela poltrona, nas minhas roupas, no meu papel, em mim. E consequentemente, naquelas relações que se inauguraram a cada encontro. Deixando claro, sobretudo para mim, que a vida do terapeuta transcende o exercício da escuta daquilo que é do outro. E isso o faz humano, bem como a sua presença. 
De acordo com a sabedoria  de Calligaris, doada aos que estão a abrir estradas nesta seara, no setting terapêutico há sempre um sujeito ansiando por se livrar de um sofrimento e outro sujeito em busca de viver do trabalho de cuidar deste outro. 
E é possível viver deste trabalho sem coisificar o outro, sem reduzi-lo ao CID que mantém pagas as minhas contas. 

Vivendo deste trabalho, em tantos momentos de angústia, ao afundar a mão nas caixas de ferramentas disponíveis, não encontrei as soluções e curas que, nas minhas ilusões de onipotência, imaginei deter. Achei ferramentas como intuição e sensibilidade, compreendendo que ambas sozinhas são levianas, assim como o conhecimento sozinho apenas disseca cadáveres. 
É preciso ir além para fazer mais que anestesiar sintomas. Fazer cuidado em saúde mental requer jornada dupla, cuidar do outro e cuidar de si. 
Assim, ainda que haja muitas vivências, papéis para desempenhar por entre a ciência psicologia, desta experiência, do local de uma jovem terapeuta, me junto ao meu primeiro paciente, que, do alto dos seus 6 anos, afirmou: "esse seu trabalho é massa. De ficar olhando as pessoas e as vezes brincar um pouco também." 
Me parece uma boa compreensão. Penso que ele entendeu melhor meu fazer do que eu mesma. 

Elisa.

sábado, 4 de novembro de 2017

Um ano depois, há vida!





Exatamente um ano se passou desde o último 4 de novembro. Naquele dia em que dormi pouco na madrugada e acordei cedinho. Havia medo e entrega.
No caminho até o hospital eu pensava nas mais diversas coisas, mas também olhava muito atentamente a estrada, as pessoas, as casas, todas aquelas coisas que ficavam para trás enquanto o carro ia em frente.

Embora tudo só tenha retomado a concretude quando a enfermeira disse: "agora nós entramos e eles aguardam aqui fora. Pode se despedir da sua família." 
Eu ainda significava esse despedir-se quando a equipe de Dr. Arthur me colocou para dormir por mais de 7 horas. 

A próxima cena que existe em minha memória é a UTI. O frio. A sonolência. A barulheira dos aparelhos. O vazio. E um curativo volumoso na minha cabeça. 
Eu não sentia nada além de um ânsia enorme de ver um rosto conhecido. Um toque quentinho. Um sorriso em resposta ao meu. Só assim eu saberia que realmente voltei à vida. 
E a confirmação de que voltei para o lugar certo chegou no olhar dos meus pais e do meu irmão ao entrarem na UTI. 

Tive certeza que estava tudo bem.

Mais tarde alguns outros toques me faziam ainda mais certa de que estava tudo bem. E assim foi durante os dias que se seguiram. Os meses. Durante esse ano!

Durante esse ano a cicatriz na pele foi se fechando. As diversas outras cicatrizes permanecem nos seus processos de elaboração. O cabelo cresceu, já cortei novamente. Foram embora 10 quilos, recuperei 5, perdi 7. Fui para o hospital tantas outras vezes. O corpo oscilou, não mais que a alma. Houve dias de lágrimas. Sorri de doer a barriga. 
Diariamente 14 comprimidos me lembram que, as vezes, o corpo exige o cuidado que a alma não encontra. 
Precisei de colo e encontrei alguns corações dispostos a tecer uma rede de afetos me envolvendo nos dias mais difíceis e nos mais leves. Precisei calar para sentir e falar para elaborar o que foi sentido.

Amanheceu. 4 de novembro novamente. E cá estou eu, produto dos 24 novembros que já se passaram. 
De todos eles, este é o mais bonito. Um ano atrás quando eu entrava no centro cirúrgico achando que morreria, havia medo. Hoje, depois de algumas pequenas mortes internas, consigo compreender que só elas anunciam uma nova vida. 

Assim, "todo sopro que apaga uma chama, reacende o que for para ficar". 
Algumas coisas morreram em mim neste ano. E se fizeram adubo para fertilizar o nascimento de tantas outras.

Um ano depois, na cabeça a cicatriz que a vida escolheu para mim, nas costas a cicatriz que eu escolhi ter na vida. 

Para não esquecer, que há vida! 

Elisa

segunda-feira, 1 de maio de 2017

Porque a vida não é só subsistência.


Abaixo dos céus estamos nós, estação pós estação, embalados pelo nascer e deitar do sol, ainda que existam os dias chuvosos.

Por quê?

Seria a vida esta constante sequência de dar sentidos e ressignificá-los, a todo tempo?
Cada um a seu ritmo, imersos nos seus infinitos particulares, permeados pelas urgências pessoais, bombardeados pelas necessidades criadas pelo mundo externo, que nos invadem a ponto de nos fazer crer que nasceram de nós.

Por quê?

E neste transcurso nos percebemos em rede com tantos outros, em meio a uma comunhão de muitos infinitos particulares, descobrindo o produto que se forma por entre o compartilhar de sentidos múltiplos. Com a delicada tarefa de acomodar os muitos que somos num mar de tantos outros, que estão sempre a ir e vir. Fora e dentro de nós.
Abençoada seja a empatia que nos permite acolher a experiência do outro enquanto legitima, ao tempo em que procuramos dar sentido próprio ao caminho escolhido, ao suicídio dele, ao modo de vida do outro, ao sabor de molho escolhido por aquele, a paixão dela, a resposta daquele terceiro, ao adoecimento do outro, ao que ele faz do amanhã.

Tudo isso acontece no presente, por vezes com um pé no passado, ou os dois no futuro. 
Afinal, só o agora é real, palpável e possível. Mas, o passado sempre volta em busca de ressignificação, reinvenção, ou para ficar, e não vai embora sem levar consigo ao menos uma noite de sono ou meia dúzia de questionamentos. “E se?”. Já o futuro, aparece antes do tempo para perturbar ou consolar, ou até mesmo para pôr em pauta o exercício de pensar além. Embalado pelo perigo de nos puxar para viver com ele, em terras utópicas.

E a vida continua a acontecer, independendo do nosso fluxo interno, do quanto de passado nos habita e em quantos futuros habitamos.  Consciência esta que só é possível diante de alguns golpes de excesso de lucidez. Ou não. Afinal, mediante as necessidades criadas pelo mundo externo, parece que lucidez mesmo é ter atenta a ideia de que vida transcende a mera subsistência.


Morre Belchior e nasce a compreensão de que, por hora, “amar e mudar as coisas me interessamais...”. 


Elisa. 

quinta-feira, 23 de março de 2017

Sobre a imprevisibilidade da vida, o outono, e as flores de cacto.



Reza a lenda que perdeu todas as moedas de ouro aquele que apostou com a vida, certo de saber qual seria o seu próximo passo. Ignorando, por completo, a imprevisibilidade e o compromisso que esta possui com o acaso.

A todo instante uma nova cena. Fecha os olhos, o tempo girou a roleta da vida. 
Não há mágica que o faça te devolver esta cena passada.

O relógio não para. Não pare também! Vive tudo, depressa!
Calma! Não tão depressa! 
É preciso tempo para digerir o tempo que tu devoras, e o que te devora, a todo o tempo.

É tempo de muitos verbos!

De procurar sentido para cada um deles, em meio ao caos de tanta ausência de sentidos. 
Nunca se procurou tanto por aquilo que não se acha.

É inicio do outono. A estação da queda das folhas. Por ausência de árvores, cai um tanto de outras coisas, lá fora e aqui dentro. A todo instante. Por vezes, a impressão é de estar imerso numa daquelas ficções científicas extremamente realistas e muito bem produzidas. Mas é só a vida seguindo o seu curso natural e vibrando em devolução tudo aquilo que lhe oferecemos. Afinal, é preciso que caia algo para nos ensinar que tudo foge ao controle. 

É preciso deixar ir. 

São os fins que anunciam os inícios. 

E é preciso deixar doer.

E por obra da imprevisibilidade, novamente, o cacto, vegetação espinhosa, grosseira, resiliente, digna de pena ao primeiro olhar, faz brotar uma flor muito sutil e delicada que vem se espremendo em meio aos espinhos e ali se acomoda. Encontra um lugar e nos ensina que há uma maneira, necessária, de estar, até mesmo por entre as secas e espinhos.

E para corroborar com a ideia, esta compreensão nasce na madrugada, em meio a insônia, iluminada apenas pelo desejo de estar...




Elisa

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

A respeito dos caminhos até chegar ao sol.



Dorme estudante, com uma rotina toda preenchida, sabendo exercer esse papel. Noutro dia acorda formado, adulto (ou não), profissional, candidato a um mercado de trabalho em crise,  com um monte de tempo vazio, sem rotina, sem emprego, sem independência, e sem saber muito a respeito dessa nova identidade, a profissional. E assim, aos pouquinhos, vai caindo o véu do "mundo do estudante universitário". Cai a ficha e revela um estado com pouquíssimas oportunidades de trabalho; a carreira acadêmica, ainda, como um espaço de investimentos constantes, e em longo prazo, ou seja, privilégio para poucos; ter "padrinhos" é muito importante para entrar no mercado; os privilégios de ser "bem - nascido". Além das exigências do mercado, não basta a graduação, é preciso cursos, especializações, diferenciais, ou seja, mais investimento, de todas as ordens. 

Para aqueles que compram educação com muito suor, não é possível se dar ao luxo de esperar sentada, ou em Paris, que surja uma oportunidade na sua área de graduação. Com o fim das cerimônias, fica o orgulho de ter conseguido formar filhos "doutores" e a expectativa dos pais que esperam bons empregos, retorno financeiro e independência ainda que isso não seja verbalizado na mesa do jantar, não diretamente. É preciso mais que conhecimento; sensibilidade, para compreender que educação e qualificação é um caminho longo, que não se encerra com a graduação.

E eis o comentário, "esse curso não é pra pobre não”. O foda-se que seria endereçado no passado se transforma em desejo de continuar acreditando que é possível fazer um caminho que alie satisfação, alegria e retorno financeiro. Afinal, inseridos num sistema capitalista, também somos parte dele, e são criadas as infinitas necessidades. Existe o momento em que começam a sobressair os determinantes sociais que diferem A, de B, os “bem-nascidos”. Está posto, eles não caminham em pé de igualdade, não tem os mesmos privilégios, nem mesmo para qualificação.

A nossa sociedade sempre esteve organizada de modo que são previstos os caminhos, locais e funções as quais podem estar aqueles que pertencem à determinada camada social. Ainda assim, há quem se arrisque a subverter a ordem do que "está posto". E neste contexto, num ato de libertação, surgem os “pobres ousados” que resolvem dar oportunidade para que os filhos alcancem degraus que eles ajudaram a construir, a manter, mas não conseguiram sequer pisar.

“Não é para filho de pobre", mas há quem resolveu por a prova e conseguiu sentar nas mesmas cadeiras que sentaram "os bem-nascidos", que estudaram em escolas com mensalidades maiores que o salário mínimo do país, fizeram inglês desde a pré-escola, intercâmbio. Para os outros havia a possibilidade de sair do ensino médio e ir trabalhar, fazer um curso técnico, ou até mesmo uma graduação, mas só aquelas destinas aos "filhos de pobre". Mas não, há quem resolveu comprar o sonho dos filhos e viver junto deles aquilo que não puderam realizar no passado. Permitir que eles sejam o que desejem ser, oportunidade esta que não tiveram. E assim, se dá , sucessivamente, o rompimento das cartilhas históricas que dizem o lugar que está destinado aos "filhos de pobre". 

Estes diplomas, por vezes, produzem alguns "incômodos", porque eles foram escolhidos e construídos com saber e conhecimento próprio, e são iguais aquele que pertence a filha de "Dr. Fulano", que mora na cobertura X, estudou na escola Y. Afinal, o diploma significa muito mais que a licença para exercer uma profissão, instrumentalizar um conhecimento. Na nossa sociedade ele ganha o status de mérito que se alcança ao subir um determinado degrau pré-destinado, que não poderia ser desejado, muito menos alcançado por aqueles que não são “bem-nascidos”. Afinal, isso não é para “filho de pobre”.

Ou melhor, não era. 

Com "o diploma" em mãos, percebe-se que este é só o começo do fim. É tempo de outras pequenas lutas diárias. Sabendo que, não tendo estradas abertas que liguem até “o sucesso", é preciso ir limpando o próprio caminho, fazendo estradas, escalando montanhas, caminhando junto daqueles que também fizeram estradas. E, às vezes, é preciso pegar atalhos, tomar fôlego, fazer outras coisas, alcançar alguma estabilidade financeira. Afinal, a vida não é feita apenas de poesia, sonhos e utopias. Ela vai acontecendo com as suas urgências palpáveis. E isso não faz de ninguém menos digno do conhecimento que construiu. Só o faz alguém, como tantos outros que vieram e ainda virão, que precisam construir o seu lugar ao sol. 
Pois, independente do espaço que ocupe, nada pode subtrair de ninguém as construções próprias, aquisições simbólicas, encontros e significados. Isso é próprio. E é impagável. 

Por hora, quem sabe, em algum momento, a gente consegue construir uma sociedade menos desigual. Começando por um sistema educacional menos capitalista, que preocupe-se menos em vender conhecimento para que as pessoas depois o venda e, assim, fazer girar a roda da mercantilização do saber, do fazer, do cuidado. E para isso, é necessária uma prática de constante resistência. Tendo em vista que, na organização social que vivemos, é preciso vender a nossa prática para comprarmos tantas outras coisas, mas isso pode ser feito de maneira menos selvagem, excludente e segregadora.
 
Elisa.